DQ

        É costumeiro ouvirmos dos gestores públicos que a pasta da saúde é aquela de maiores desafios e dificuldades. Aqueles que a assumem afirmam, não raro, que a saúde mental constitui-se numa sub-área de maior complexidade e escassez de recursos para resolução das carências da população. E aqueles que comandam as ações na saúde mental não titubeiam em confirmar: a dependência química é o caos da saúde pública.

            Tratamos aqui, pois, de uma doença de características muito peculiares, de enorme complexidade e que se insinua em áreas diversas como a saúde, as relações familiares, as políticas públicas de saúde e de repressão do tráfico e da criminalidade, os costumes e “crenças” da sociedade (sempre numa relação ambígua e ambivalente com o uso de substâncias) e, sem dúvida, a parte que nos cabe desenvolver mais amiúde neste artigo, a espiritualidade das pessoas.

            Ao longo da história da humanidade, muitas teorias surgiram para explicar a relação que certas pessoas tinham com determinadas substâncias naturais, as quais chamaremos aqui de substâncias psicoativas (SPA), assim nomeadas por terem seus efeitos primariamente no tecido cerebral. A concepção que temos hoje em dia, de que alguns indivíduos desenvolvem uma doença que lhes levam ao uso compulsivo de uma SPA é bastante recente. Na maior parte de nossa história, vigoraram conceitos amplamente moralistas sobre este fenômeno, residindo sua causa em deficiências puramente morais, rebaixando os compulsivos no vício à categoria de seres degenerados, incapazes de desenvolverem um senso de consciência e de auto-respeito. Assim, uma vez que a teoria vigente na sociedade colocava a questão no âmbito estritamente da moral, as “terapias corretivas” propostas objetivavam uma punição daqueles que não souberam conviver em sociedade, usando de modo inadequado o livre arbítrio, através de medidas coercitivas e humilhantes, muitas vezes com requintes de crueldade. O indivíduo submetido à punição, como no caso dos ébrios ingleses, com exposição em praça pública e com direito a nome no jornal local, deveria ter aprendido a sua lição.

           Infelizmente, apesar do modelo de doença ter gradualmente substituído a equivocada concepção anterior, verificamos ainda resquícios de sua influência nos dias de hoje, mesmo entre profissionais de saúde, supostamente aptos à condução da recuperação dos doentes. Como vemos, esta é realmente uma área complexa e que demanda, daqueles que convivem com os pacientes, sejam profissionais, amigos ou familiares, uma auto-análise profunda sobre as crenças que alimentamos sobre o fenômeno, pois elas influenciam a forma como lidamos e encaramos o problema. Como de resto em todas as relações humanas, mas em especial ao lidar com doentes deste gênero, sem amor não vamos a lugar algum.

Introduzindo espiritualidade no tratamento

 

           Mas foi através do advento dos Alcoólicos Anônimos (AA) que verificamos, talvez pela primeira vez, que com autoridade impôs-se como medida terapêutica o elemento “espiritualidade.” Uma insurgência espontânea da sociedade sem a participação de profissionais de saúde (pois sempre, de um modo geral, mais céticos e descrentes do que a população) que, num processo de profunda inspiração, reuniu elementos da psicologia cognitiva e comportamental, associada aos benefícios do suporte social e das grupoterapias, reunidas sob a égide do incentivo à espiritualidade, compõem hoje uma das terapêuticas de maior sucesso no ramo das dependências. Regida pelo ideário dos “12 passos”, propõe-se a conduzir seus adeptos à abstinência total, numa filosofia espiritualista e não sectária, aberta a todos os tipos de religiosidade e de formas de compreender a Deus. Verificamos que, do programa dos 12 passos, poderíamos dizer que 7 deles são, abertamente, de cunho espiritual.

 

Quadro 1. Programa dos 12 Passos dos Alcoólicos Anônimos. Em negrito, os “passos espirituais”

 

1. Admitimos que éramos impotentes perante o álcool – que tínhamos perdido o domínio sobre nossas vidas.

2. Viemos a acreditar que um Poder Superior a nós mesmos poderia devolver-nos a sanidade.

3. Decidimos entregar nossa vontade e nossa vida aos cuidados de Deus, na forma em que o concebíamos.

4. Fizemos um minucioso e destemido inventário moral de nós mesmos.

5. Admitimos perante Deus, perante nós mesmos e perante outro ser humano a natureza exata de nossas falhas.

6. Prontificamo-nos inteiramente a deixar que Deus removesse todos esses defeitos de caráter.

7. Humildemente rogamos a Ele que nos livrasse de nossas imperfeições.

8. Fizemos uma relação de todas as pessoas a quem tínhamos prejudicado e nos dispusemos a reparar os danos a elas causados.

9. Fizemos reparações diretas do danos causados a tais pessoas, sempre que possível, salvo quando fazê-las significasse prejudicá-las ou a outrem.

10. Continuamos fazendo o inventário pessoal e, quando estávamos errados, nós o admitíamos prontamente.

11. Procuramos por meio da prece e da meditação, melhorar nosso contato consciente com Deus, na forma em que O concebíamos, rogando apenas o conhecimento de Sua vontade em relação a nós, pedindo forças para realizar essa vontade.

12. Tendo experimentado um despertar espiritual, graças a estes passos, procuramos transmitir esta mensagem aos alcoolistas e praticar estes princípios em todas as nossas atividades.

 

          Pela primeira vez, portanto, ouviu-se falar em Deus de forma sistematizada em alguma abordagem terapêutica nos tempos modernos. Como podemos constatar no quadro 1, o programa de tratamento pretende conduzir seu adepto a um “despertar espiritual” e a um contato mais próximo e íntimo com Deus, e este encontro passa por uma revisão profunda e sincera do ser para consigo mesmo, na revisão de seus erros e da sua forma de se relacionar com o outro. Temos aqui nada mais do que a tão necessária reforma íntima, caminho seguro de qualquer realização espiritual. Há a proposição de dois recursos terapêuticos objetivos, em sintonia com as orientações da espiritualidade, como a prece e a meditação, também recursos valiosos na higienização mental e na profilaxia de quadros obsessivos. Acreditamos que o elemento espiritual dos AA é o grande responsável pelo seu sucesso internacional, difundido hoje em mais de 170 países do mundo.

 

 

 

 

 Pesquisas na área da saúde: dependência química e religiosidade

 

             Uma área relativamente nova da pesquisa médica tem avaliado a influência da espiritualidade e da religiosidade dos pacientes e como elas se relacionam com a sua saúde. De modo bastante sintético, os achados têm sido estimulantes: os pacientes com maiores índices de religiosidade/espiritualidade, além de terem menos riscos de cometerem suicídio, de desenvolverem quadros depressivos e de apresentarem melhor qualidade de vida, também estão mais “protegidos” do desenvolvimento da dependência química. Atualmente temos considerado que a espiritualidade, assim como a constituição de famílias coesas e harmoniosas, em importantes fatores de proteção ao uso de álcool e drogas, bem como de seus problemas decorrentes.

            Um tipo particular de pesquisa realizado no Brasil, sobretudo pelo grupo do Dr. Paulo Dalgalarondo, tem avaliado a influência dos diferentes tipos de religiosidade e sua relação com abuso e dependência de SPA.

Tabela 1.  Denominações religiosas e sua associação com o uso de álcool de drogas

 

Evangélicos

Católicos

Espíritas

Sem religião

Qualquer uso de álcool ou drogas no mês

13.6%

27.7%

33.7%

Não avaliado

Uso problemático de álcool

3.1%

8.7%

10.2%

18.3%

Abuso ou dependência de álcool

3.5%

8.8%

13.3%

25.0%

Uso de maconha no último mês

3.7%

5.1%

6.5%

15.8%

           Do estudo da tabela 1 podemos retirar alguns apontamentos. Primeiramente, vemos que independente da denominação religiosa, o cultivo a alguma forma de espiritualidade está associado de modo amplamente significativo ao menor uso de SPA. Esta notícia em muito nos alenta, pois, como nos disse Emmanuel, na introdução do livro “Nosso Lar”, afirma: “…em nosso campo doutrinário, precisamos, em verdade do Espiritismo e do Espiritualismo, mas, muito mais, de ESPIRITUALIDADE”.  Portanto, à margem de qualquer disputa por melhores “resultados” entre as diferentes religiões, constatamos alegremente o efeito da espiritualidade no comportamento das pessoas. É forçoso acrescentar, não obstante, que tais pesquisas não se constituem em veredictos sobre o real comportamento dos adeptos das religiões citadas, pois podem ter sido objeto de vieses, ou seja, distorções inerentes à própria pesquisa e não retratarem verdadeiramente a realidade. (Por exemplo, o fato dos espíritas terem, em média, um maior poder aquisitivo conforme dados do IBGE e este fator sabidamente, e por si só, estar associado ao maior consumo de álcool). No entanto, talvez caiba a reflexão de que o movimento espírita, de um modo amplo, ainda carece de mais ações sistemáticas na educação das consciências em suas palestras doutrinárias, sobretudo na temática álcool e drogas, sempre respeitando o livre arbítrio dos indivíduos, mas, sem melindres, passando informações claras e objetivas sobre a perniciosidade da relação com as substâncias entorpecentes. O trabalho dos evangelizadores da infância e da juventude é de extrema importância no mais efetivo tratamento conhecido para esta problemática: a prevenção.

 

(Reprodução parcial de artigo publicado na revista Reencarnação/FERGS, ano 2008, segundo semestre. Volume 436. Autor: Paulo Rogério Aguiar)

Bibliografia

  1. Religião, Psicopatologia e Saúde Mental. Paulo Dalgalarrondo. Artmed.
  2. Ciência Espírita e suas Implicações Terapêuticas. J. Herculano Pires.Ed. Paidéia.
  3. Patologias da Alma. A Reencarnação N: 425. FERGS.
  4. Nosso Lar. André Luis/ Chico Xavier.
  5. Razões que levam determinados jovens, mesmo expostos a fatores de risco, a não usarem drogas psicotrópicas. Dissertação de Mestrado. Zilá Van Der Meer Sanchez. UNIFESP.2004.